Contos, crônicas e fragmentos
Contos, crônicas e fragmentos
Onde moram os balões
Junho de 2025
A matéria que faltava a Isabel ela procurava dentro de si, inventava. Não sabia exatamente o que tinha, só sabia que tinha. Desde pequena, um olhar vidrado, imaginação fértil, nunca estava exatamente ali. “E precisa falar com essa voz de peixe morto?”, irritou-se uma coleguinha certa vez. Não falava com vontade. A professora relatava à mãe: “ Ela fica sentada em um canto na hora do recreio, no parquinho. Às vezes brinca com um graveto”. A mãe não achava nada demais, talvez porque também fosse assim.
Podia ser graveto, um pedaço de papel fino, uma planta... e ela se mexia sem parar, movimentando o objeto com aquela sensação perfeita que era a união da imaginação com a ponta do artefato maleável. Às vezes, parecia uma pequena maestra. “kiki Cascavel” (talvez fosse algum personagem de programa infantil), ela apelidou o seu brinquedo, que mudava de figura, mas não de nome, nem de função – transportá-la para um mundo fantasioso mais palpável.
Eram histórias de amigas, mulheres grávidas, famílias, filhos...pessoas imaginárias ou vistas no mundo real que, em sua cabeça, ganhavam outra vida. Era saboroso. A vida tinha mais vida nesses momentos, performance e contorno. Aquilo que era, era mesmo o tempo todo. Na movimentação lúdica os acontecimentos tinham sentido.
Mas também se aborrecia quando passava muito tempo nessa brincadeira, sem perceber o caminhar das horas. Não gostava quando anoitecia de repente. Dava angústia. Nessa idade ainda preferia a manhã. Preferência que mudou mais para o fim da infância, quando a noite caíra em sua predileção e as tardes se tornaram sufocantes. “Vai ter que trabalhar de vigia noturno”, constatava o pai, que se irritava com o costume da menina e com seu temperamento parecido ao da mãe.
Com o transcorrer da idade, Isabel se deu conta que não ficava bem para uma moça andar por aí com a “Kiki Cascavel”. Até dentro de casa o costume vinha causando desconforto. As irmãs riam, o pai estranhava, a mãe era a única que parecia não se incomodar. Começou então a praticar o seu exercício exótico durante as noites, quando todos dormiam. Com frequência passava a madrugada adentro imaginando histórias e se mexendo com a Kiki. Inclusive, não foram poucas as aulas de manhã que frequentou com olheiras profundas devido às noites mal dormidas. Mas é que de noite lhe vinha uma energia que parecia de uma vida inteira. Queria escrever, dançar, conversar sozinha, imaginar...era tanta coisa para imaginar...imaginava-se artista. Também vislumbrava soluções para tudo o que não se resolvia durante o dia. Na verdade, nada disso atrapalhava o rendimento escolar. Ela ia bem, tirava notas boas; mas não se esforçava além da conta, o que lhe roubaria muita energia, que lhe era escassa por natureza.
O problema se acentuou quando chegou à idade adulta. E o trabalho em horário comercial a enclausurou. Faculdade de manhã e estágio à tarde. Gastava muitas calorias com aquele sentimento de vergonha que ronda todo mundo nessa fase em que se caminha para a maturidade. Não conseguia mais imaginar de noite. Precisava dormir, não tinha mais jeito. E foi difícil fabricar mentalmente tantas histórias sem mexer o corpo durante o dia. Isso quando podia se dar ao luxo da desatenção. Na verdade, o que ela tinha no trabalho não era atenção, mas tensão mesmo. Às vezes ainda dava uns pulos escondida, dentro do banheiro, atrás da porta de um armário.
Na hora do almoço, quando a guarda baixava, imaginava restaurantes exóticos, em outros países, cidades; comidas diferentes, de luxo ou de fazenda; até mesmo fantasiava que era uma chefe de cozinha com estabelecimento próprio, “Punto e basta” era o nome do seu restaurante italiano para almoço durante a semana. “Punto e basta, o seu cantinho italiano do dia a dia”.
“Isabel, Isabel!” riam as colegas vendo-a atônita sem responder as perguntas, paralisada no meio da mastigação, com as bochechas ainda cheias de comida... “Acorda!”, gargalhavam. As únicas que se preocupavam de verdade com ela eram Janaina e Amanda, que já a conheciam de antes, embora não soubessem da Kiki Cascavel, pois segredo assim não se conta fora do círculo familiar onde amar não se escolhe.
“Você já tentou fazer terapia?” perguntou certa vez Amanda.
“Eu já faço”
“Será que não seria o caso de medicação? Distraída desse jeito você não vai durar muito no trabalho.”
“Bel, a gente sabe que não é por mal” – Janaina tentou explicar – “mas os outros podem achar que é desleixo, falta de vontade, sabe?”
“Eu tenho vontade, mas ela se perde...se perde na ação. Se disfarça na ação.” Isabel soltou essas palavras com o olhar mais vago que o de costume. Tanto que as colegas se entreolharam e silenciosamente concordaram em não questionar, mesmo sem entender. Melhor teria dito Isabel que a vontade se perde na “falta de” ação, pois agir era um verbo que cada vez menos fazia parte da vida dela.
Chegaram-se os dias em que o problema se agravou. Ela passou a se alimentar menos e imaginar ainda mais. Emagreceu, estava visivelmente mais leve e a pele mais flácida pela falta de músculo e gordura. Parecia mais velha que a mãe. Esta começou a se preocupar de verdade com a mudança do hábito alimentar. Levou a moça ao médico, que alegou ser um estresse temporário, receitando apenas umas pílulas vitamínicas para compensarem a alimentação deficitária. O paliativo não sossegou o coração de mãe. Era como se ela soubesse que o caso não era só de saúde, mas sim o prenúncio de um terror maior.
Certa madrugada, na busca por um copo de água a mãe deu de cara com a filha sentada no meio da cozinha, no chão, no escuro até então. Estava magra, visivelmente fraca. “Com a sua avó demorou mais tempo”, a mãe murmurou com lágrimas nos olhos. Isabel nada ouviu, nem sequer virou o rosto. Talvez ela tivesse gastado muito a mente com os estudos ou se estressado demais com os pensamentos. Talvez por esses motivos o que acometera sua avó depois de velha a acometia ainda jovem. Mas o quê?
Naquela manhã, Isabel foi à faculdade como um zumbi. A pequena bolsa nas costas parecia pesada em comparação ao seu corpo curvado e sem ação. Fazia o que era necessário fazer automaticamente, sem olhar; escovou os dentes, vestiu a roupa, tomou uma caneca de café, pegou uma maçã e saiu. Uma marionete cujos movimentos eram manipulados por força oculta.
O ônibus a recebeu e a cuspiu no lugar de sempre. Já na porta do edifício universitário, as amigas a encontraram, assustadas com o que viam. Seu corpo não se movia mais horizontalmente, para frente, atrás ou lados, mas dava sinais verticais ascendentes. Os pés nas pontas, os ombros subidos. Seria possível? Isabel começava a flutuar! Foi o maior alvoroço na calçada, estudantes, comerciantes locais e transeuntes se aglomeraram para olhar. Uns estavam boquiabertos, outros gritavam ou riam nervosamente, teve também aqueles que evocaram o nome de Cristo. Enquanto isso, Amanda e Janaina tentavam fixá-la no chão, puxavam suas pernas, tentaram sentá-la, até mesmo amarraram objetos pesados em seus pés. Mas não teve jeito. O espetáculo foi completo. Tal qual um balão de gás hélio ela flutuou pelos ares. Flutuou até a perderem de vista, uma mochila carregando um pequeno ponto vestido de calça jeans e blusa roxa. Ameninas não foram à aula. Aflitas, esperavam que a amiga retornasse. Mas não. Todos os dias paravam no mesmo lugar da calçada olhando para o alto. Soube-se mais tarde que Isabel estava em uma zona intermediária entre a terrestre e o espaço sideral, que tomou por residência definitiva. Local onde encontrou a sua avó materna junto de outros balões.
Isabel retornava às vezes à terra. Visitava as amigas e sua mãe, que nesses momentos tinha um pouco de alívio para a terrível dor de ter duas entes tão queridas perdidas no espaço. Ela podia ainda ouvir de Isabel notícias de sua velha mãe. Esta sim nunca mais voltara. É o que acontece aos balões mais velhos. Entendeu, pela explicação de Isabel, que certas pessoas nascem com uma densidade interna menor e precisam de um esforço constante para permanecerem no chão. Mas quando o esforço excede certa medida e vira desgaste, a flutuação é inevitável. O fato de a filha ter a companhia da avó a tranquilizava um pouco. Gastava longas horas do dia imaginando as duas, suas vidas e rotinas. Chegava a sonhar com esse lugar onde moram os balões.
Reencontrando o tempo
Abril de 2024
Sempre gostei de coisas antigas, como filmes velhos em preto e branco, ilustrações e histórias de tempos remotos. A própria disciplina História me encanta. Mas no dia 18 de abril de 2024, especificamente, tive uma percepção mais holística sobre isso, se é que essa palavra “holística” se aplica bem ao caso.
Ultimamente, ando vendo muitos programas baseados em relatos reais sobre crimes ou acontecimentos extraordinários, como casas mal-assombradas e a vinda de extraterrestres à Terra ( me parece que na década de 1970 muitos ETs passaram pelos Estados Unidos). Mas nesse dia queria ver alguma ficção antiga e me deparei com Star Trek, por acaso. Digo isso porque nunca fui fã de ficção científica, mas tenho me deparado bastante com ela.
Comecei a assistir e lembranças brotaram na minha cabeça. Lembrei que quando criança, na década de 1990, vi alguns trechos aleatórios de Star Trek, enquanto meu pai assistia à série na TV aberta (devia ser na extinta TV Manchete). Na verdade, foi essa lembrança que me fez clicar no play. Obras velhas me trazem questões existenciais do tipo “onde eu estava nessa época? Onde eu estava antes de nascer? E onde essas pessoas estão agora depois da morte?”.
Quando cursava a faculdade de jornalismo, no comecinho dos anos 2000, uma colega me fez uma pergunta que revelava muito da sua própria opinião: “Será que você escolheu o curso certo?”. Parte da “dúvida” surgiu, presumo, pelo meu gosto por história. Demonstrei muito interesse pelo filme “A montanha dos sete abutres”, de 1951, que um professor passou em sala. Se fosse novo e colorido, eu não teria dado muita importância. Minhas colegas de curso achavam que eu não tinha o espírito de atualidade e sagacidade de uma jornalista.
Já em 2012, na entrevista de seleção para o mestrado, uma professora me qualificou como nostálgica, disse que eu tinha “um pezinho em história”, algo assim. Dessas observações eu gostei, eram elogiosas e não atrevidas como as das meninas do jornalismo. Eu queria estudar a relação entre telenovelas e folhetins do século XIX. Acabei ficando “só” com as telenovelas. Mas não afastei o meu lado “nostálgico”. Atualmente, pesquiso os conceitos de cronotopo (união de espaço e tempo) e territorialidade no audiovisual.
Pegando o fio desses pensamentos, me dei conta que a questão posta em minha vida não é o passado, e sim o tempo. Percebi que os episódios vividos me trouxeram exatamente para o momento presente, para a atual etapa da minha carreira acadêmica, para a pesquisa que estou fazendo, para o relacionamento que vivo há 9 anos, nesse apartamento em que moramos e para todos os desafios e sentimentos que vivencio hoje. Não que eu acredite em um destino determinado, mas sim que o construímos sem saber, porque o futuro está sempre no aqui e agora. Escrevendo assim parece lógico e banal, rs.
Quando comprei o livro O primeiro cinema, no início dos anos 2000, na livraria do espaço Unibanco (agora espaço Itaú), em São Paulo, nem imaginava que seguiria a carreira acadêmica. Foi em uma ida casual ao cinema com minha irmã. Nada planejado, poderia ter sido qualquer outro livro. Para ser sincera, a capa me chamou a atenção. Li e aproveitei muito o conteúdo. Mais de 10 anos se passaram e utilizo exatamente esse livro quando dou aulas de linguagem audiovisual. Coincidência? Prefiro pensar que as possibilidades já estão no inconsciente e aparecem codificadas na consciência, que nos leva às escolhas, como a compra de um livro.
A própria série Star Trek trata do tempo: projeções futuristas nos anos 1960, que não foram satisfeitas nos dias de hoje (viajar pelo espaço e encontrar extraterrestres), e ao mesmo tempo um imaginário estético tecnológico peculiar daquela época, inclusive nas técnicas audiovisuais. A série apresenta várias ideias de passado: civilizações desaparecidas, referências religiosas, arqueólogos planetários e objetos que remetem à era primitiva.
Depois de desligar a televisão, corri pegar O livro do tempo para fazer seu fichamento. Era esse o momento certo. A obra mostra como o tempo é uma construção humana, social e cultural. A sua quantificação não é exata e sim ideológica. Vários tempos simultâneos constroem a estrutura temporal de uma sociedade, argumenta o autor. Creio também que vários tempos simultâneos criam a vida de uma pessoa. Mais...acho que nós somos o próprio tempo.
Mulher de rapina
2021
Estatira estava no ônibus a caminho de Bertioga há uns 20 minutos quando, para passar o tempo, apanhou da bolsa o papel amarelado com as ilustrações de aves australianas. A folha, que parecia arrancada de um livro antigo de colecionador, aparecera misteriosamente há uns meses na gráfica onde trabalhava. Como ninguém reivindicou a propriedade do material, pegou-o para si. Desde então, desenvolveu considerável interesse por aves e ilustrações antigas. Uma verdadeira fixação por tais assuntos ganhou espaço em sua vida. Eram-lhe peculiares pensamentos e interesses obsessivos.
Foi em um dia desses, tomada pela nova atração, que lhe ocorreu a ideia de entrar mais em contato com a natureza. Desejava ver de perto aves grandiosas, que não fossem os urubus que observava de sua janela, pousados no topo dos prédios em São Paulo. Não que não gostasse de urubus, muito pelo contrário, maravilhavam-na, assim como os condores, que habitam a Cordilheira dos Andes. “São injustiçadas as aves de rapina”, protestava. Pesquisou por passeios e encontrou Vila de Itatinga em Bertioga, o qual reservou por uma agência de ecoturismo. E lá estava ela, a caminho do litoral, em uma excursão que duraria apena um dia.
Ao chegar na cidade litorânea, o grupo turístico rumou às margens do rio Itapanhaú, o qual atravessaram a barco para pegar o bonde na outra margem em direção à vila. Enquanto aguardavam pelo transporte, Estatira se afastou para observar a mata em volta. Distraiu-se, como o habitual, imaginando possíveis histórias na Serra do Mar. Retornou à estação e deu de cara com ela vazia. Os excursionistas pegaram o bonde e a esqueceram lá. Não se importou, pois sabia que não era do tipo de pessoa marcante, que faria falta em tão pouco tempo. Logicamente, esperou por outro bonde. Mas, passou mais de uma hora e nada! “A festa acabou, a luz apagou, o bonde não veio. E agora, José?”, citou Carlos Drummond em pensamento, julgando oportuno para a ocasião. Decidiu seguir o caminho do bonde a pé (7 km!) na esperança de encontrar pássaros pelo trajeto e fotografá-los. Porém, o tempo virou rapidamente. Nuvens negras descarregaram suas águas pela serra sem aviso. Assustada com o aguaceiro, adentrou a mata, deixando o caminho do trilho.
Distinguiu ao longe uma mulher acenando. Uma senhora indígena que, após sinalizar com as mãos, entrou em uma oca. Estatira foi logo atrás, sem cerimônia, como se o encontro tivesse sido marcado. A mulher nada falou, nem a fitou nos olhos, apenas acomodou o corpo atarracado em uma cadeira ao fundo do aposento. Estatira observou o perfil daquela figura, o nariz adunco era semelhante ao bico de uma ave. “Ela toda parece uma periquita australiana”, concluiu.
O interior da oca abrigava uma espécie de exposição histórica sobre a região - ilustrações, recortes de jornais, fotografias, pedaços de livros e cartas. Foi então que Estatira soube que a Vila de Itatinga, e a usina hidrelétrica que a originou, fora construída por ingleses no começo do século XX. Entre as ilustrações expostas, havia muitas de aves. Estranhamente, algumas eram iguaizinhas às da sua folha amarelada, e continham a assinatura de Elizabeth Gould, uma inglesa. Também constavam ilustrações de outras autorias, de pássaros brasileiros, da Mata Atlântica, Amazônia, do Pantanal e da Caatinga. Impressionante foi descobrir ali desenhos de aves de Galápagos, retirados de partes da obra de Charles Darwin, assinados pela tal Elizabeth Goud! Tudo parecia melhor do que se tivesse visto os animais ao vivo, supôs.
Absorta em tanta informação, esqueceu por uns instantes a presença da senhora ao fundo, até o momento em que sons de grandes penas em movimento invadiram o espaço. Voltou o olhar para a índia e não pôde acreditar no que via diante de si. A mulher se transformava em uma enorme ave! Os dedos dos pés encurvavam, os braços criavam penas pretas e brancas e uma cauda de plumas surgia. O mais fantástico foi a transfiguração do rosto. A mulher mirou fixo os olhos de Estatira. Esta viu crescer um longo topete na cabeça da ave. As feições prontas ainda lembravam um rosto humano. “Harpia!”, Estatira gritou em pensamento. A velha era uma harpia! Rapinante rara por ali. Experimentou encanto, mas também medo, principalmente quando o bicho impetuosamente passou a engolir tudo o que via pela frente, inclusive a própria oca. Fechou os olhos, temendo ser devorada. Encolheu- se no chão e percebeu uma grande ventania. Por pouco não saiu voando. Quando conseguiu levantar o corpo, pôde avistar a harpia longe no céu, já livre de nuvens
Em São Paulo, Estatira não conseguia lembrar se continuou o passeio para a vila depois. Ignorava como voltou para casa, tamanho atordoamento. Não contou para ninguém o ocorrido, pois descreriam. Além do mais, não possuía amigo ou parente próximo a quem pudesse confiar a história. Ninguém soube. A vida seguiu como de costume. E Estatira continuou adquirindo obsessões.
“Ela tinha uma certa fragilidade física [...]”
2019
Essa frase de Truffaut na obra em que ele entrevista Hitchcook ficou na minha cabeça depois daquela aula de linguagem audiovisual. Não exatamente assim, pois lembrava dela de outro jeito, algo como: “ela tem uma fragilidade que as outras não têm”. O cineasta francês compara as atrizes Joan Fontaine com Ingrid Bergman e Grace Kelly. O argumento era o de que a fragilidade da atriz a tornava mais adequada para o papel de protagonista do filme Rebecca, de Hitchcock. Imagino que tal julgamento não teria sido aplicado a um artista homem. Nesse caso, ele teria separado o ator de sua personagem.
Naquela aula, eu trouxe aos alunos um vídeo sobre o filme Suspeita, igualmente dirigido por Hitchcock e protagonizado por Joan, no papel de Lina. Inclusive, a atuação rendeu à atriz um Oscar na época. Também selecionei uma cena de Rebecca para um exercício. A personagem de Joan, uma recém-casada cuja nome não é mencionado durante toda a obra, entra pela primeira vez na mansão onde vai morar. Ela está acompanhada do marido, um viúvo, que viveu na mesma residência com a primeira mulher chamada Rebecca. Os criados, dentre eles a governanta leal à antiga chefe, esperam a nova patroa na sala da casa. Ao entrar, a jovem fica visivelmente nervosa e insegura quando se depara com a fileira de empregados, enquanto a governanta, senhora Danvers, impõe-se com postura e olhar autoritários.
A atividade foi meio improvisada. Pedi a eles que observassem a cena e descrevessem os planos. Mas, diante da impossibilidade de eles anotarem no escuro, deixei que apenas assistissem e depois imaginassem o trecho novamente com os planos que lhe parecessem coerentes. Não liderei a situação como eu gostaria. Estava vulnerável diante daqueles olhares confusos e desconfiados dos alunos. Observavam-me como se soubessem o que eu mesma nem havia percebido ainda. Era eu uma metáfora da cena ou a cena uma metáfora de mim naquele momento?
Uma aluna apresentou a sua versão. Segundo ela, a recém-casada deveria se impor, não se abater pela postura da governanta. A jovem olharia os criados do alto da escada - contra-plongée em primeiro plano na atriz e plongée em plano de conjunto nos empregados abaixo. De quem ela estava falando afinal? Da recém-casada ou da professora iniciante? Que história ela queria reescrever? Somente me fiz essas perguntas no carro, quando ia embora para a casa.
No final da aula, os alunos iam embora depois de entregarem a atividade na minha mesa. Um deles, um rapaz que sempre assistia às aulas com os olhos vermelhos e lacrimejantes, aproximou-se. Outro dia ele havia me cumprimentado dando a mão, como pensei que fosse fazer novamente. Mas, dessa vez sua mão se dirigia ao meu rosto. Não tive reação. Em uma atitude reprovável na relação professor e aluno, ele tocou em meu queixo como quem faz um carinho em alguém próximo. Eu nada fiz, abaixei a cabeça constrangida. Devo ter ficado vermelha, senti a quentura na face. Ouvi uma aluna, a mesma que reescreveu a cena, chamar a atenção do rapaz: “Você tá louco? Você encostou na professora!”. Admirei a reação em minha defesa, mas, era eu quem deveria ter reagido. Eu, a professora.
“Ela tem uma fragilidade que as outras não têm”.
Li no mesmo livro de entrevista com Hitchcock que Alma Reville, esposa do cineasta, foi uma das autoras do roteiro de Suspeita. Soube depois que ela sempre contribuía nos filmes do marido e quase nunca era creditada. Será que Truffaut também diria que ela tem uma fragilidade diante de Hitchcock, que a fazia adequada para tal submissão? Como a minha aluna teria reescrito essa história?
Faço esses questionamentos dentro de mim e, sem nunca ter aprendido, tento encontrar caminhos para me reescrever. Para atuar em primeiro plano, primeiríssimo plano, em ângulo normal ou até mesmo contra-plongée quando a situação exigir. Penso em como historicamente as mulheres nunca foram educadas para se impor. As mulheres negras então...Uma colega de trabalho me contou algumas de suas experiências. Por ser negra, ela enfrenta dupla desconfiança em relação à sua capacidade. A mulher negra e periférica - a mais vulnerável socialmente e desprovida de subjetividade em suas representações midiáticas - deve ter muito mais o que relatar a respeito. São lutas sociais, diárias e existenciais.