Contos, crônicas e fragmentos 

Reencontrando o tempo

Abril de 2024

Sempre gostei de coisas antigas, como filmes velhos em preto e branco, ilustrações e histórias de tempos remotos. A própria disciplina História me encanta. Mas no dia 18 de abril de 2024, especificamente, tive uma percepção mais holística sobre isso, se é que essa palavra “holística” se aplica bem ao caso.

Ultimamente, ando vendo muitos programas baseados em relatos reais sobre crimes ou acontecimentos extraordinários, como casas mal-assombradas e a vinda de extraterrestres à Terra ( me parece que na década de 1970 muitos ETs passaram pelos Estados Unidos). Mas nesse dia queria ver alguma ficção antiga e me deparei com Star Trek, por acaso. Digo isso porque nunca fui fã de ficção científica, mas tenho me deparado bastante com ela.

Comecei a assistir e lembranças brotaram na minha cabeça. Lembrei que quando criança, na década de 1990,  vi alguns trechos aleatórios de Star Trek, enquanto meu pai assistia à série na TV aberta (devia ser na extinta TV Manchete). Na verdade, foi essa lembrança que me fez clicar no play. Obras velhas me trazem questões existenciais do tipo “onde eu estava nessa época? Onde eu estava antes de nascer? E onde essas pessoas estão agora depois da morte?”.

Quando cursava a faculdade de jornalismo, no comecinho dos anos 2000, uma colega me fez uma pergunta que revelava muito da sua própria opinião: “Será que você escolheu o curso certo?”. Parte da “dúvida” surgiu, presumo, pelo meu gosto por história. Demonstrei muito interesse pelo filme “A montanha dos sete abutres”, de 1951, que um professor passou em sala. Se fosse novo e colorido, eu não teria dado muita importância. Minhas colegas  de curso achavam que eu não tinha o espírito de atualidade e sagacidade de uma jornalista.

Já em 2012, na entrevista de seleção para o mestrado, uma professora me qualificou como nostálgica, disse que eu tinha “um pezinho em história”, algo assim. Dessas observações eu gostei, eram elogiosas e não atrevidas como as das meninas do jornalismo. Eu queria estudar a relação entre telenovelas e folhetins do século XIX. Acabei ficando “só” com as telenovelas. Mas não afastei o meu lado “nostálgico”.  Atualmente, pesquiso os conceitos de cronotopo (união de espaço e tempo) e territorialidade no audiovisual.

Pegando o fio desses pensamentos, me dei conta que a questão posta em minha vida não é o passado, e sim o tempo. Percebi que os episódios vividos me trouxeram exatamente para o momento presente, para a atual etapa da minha carreira acadêmica, para a pesquisa que estou fazendo, para o relacionamento que vivo há 9 anos, nesse apartamento em que moramos e para todos os desafios e sentimentos que vivencio hoje. Não  que eu acredite em um destino determinado, mas sim que o construímos sem saber, porque o futuro está sempre no aqui e agora. Escrevendo assim parece lógico e banal, rs.

Quando comprei o livro O primeiro cinema, no início dos anos 2000, na livraria do espaço Unibanco (agora espaço Itaú), em São Paulo, nem imaginava que seguiria a carreira acadêmica. Foi em uma ida casual ao cinema com minha irmã. Nada planejado, poderia ter sido qualquer outro livro. Para ser sincera, a capa me chamou a atenção. Li e aproveitei muito o conteúdo. Mais de 10 anos se passaram e utilizo exatamente esse livro quando dou aulas de linguagem audiovisual. Coincidência? Prefiro pensar que as possibilidades já estão no inconsciente e aparecem codificadas na consciência, que nos leva às escolhas, como a compra de um livro. 

A própria série Star Trek trata do tempo: projeções futuristas nos anos 1960, que não foram satisfeitas nos dias de hoje (viajar pelo espaço e encontrar extraterrestres), e ao mesmo tempo um imaginário estético tecnológico peculiar daquela época, inclusive nas técnicas audiovisuais. A série apresenta várias ideias de passado:  civilizações desaparecidas, referências religiosas, arqueólogos planetários e objetos que remetem à era primitiva.

Depois de desligar a televisão, corri pegar O livro do tempo para fazer seu fichamento. Era esse o momento certo. A obra mostra como o tempo é uma construção humana, social e cultural. A sua quantificação não é exata e sim ideológica. Vários tempos simultâneos constroem a estrutura temporal de uma sociedade, argumenta o autor. Creio também que vários tempos simultâneos criam a vida de uma pessoa. Mais...acho que nós somos o próprio tempo.



Fragmentos do desânimo

 Março de 2023

Eu tinha maiores expectativas para a minha vida. Mas o tempo passa e vem passando, trouxe desdobramentos diferentes. Um dia me disseram: “a vida não vai ser muito diferente disso”. Eu tinha 18 anos. Me marcou mais de quem vinham essas palavras. Alguém na mesma situação que eu. Se a vida não mudaria antes, imagine aos 40!

Cada vez que tento tomar as rédeas totalmente, eu me canso demais e me frustro. Será melhor entender que eu não pertenço a mim mesma?

Eu tinha muitas vontades naquela época, queria ser livre, mas nunca fui. Na verdade, sempre caminhei pela tangente, nunca pelo centro, jamais pelo cerne.

O trabalho é o lugar onde todas as questões não resolvidas se encontram. O andamento emperra. E trabalhar com tarefas intelectuais pode ser uma armadilha para o ego.

Pelo menos andando pela praia a água do mar que banha meus pés parece levar muitas coisas. O barulho das ondas é o som do tempo passando. É como o avião no céu na decolagem ou próximo à aterrisagem. Na infância achava que esse era o som do dia passando.

Escrever pode ser alguma solução. Solução para a minha confusão, para minha prostração. É que sinto que já não sou a mesma. Não consigo mais fazer tantas relações intelectuais e ao mesmo tempo mal comecei uma carreira. Pouca ou nenhuma expectativa. Aí está o perigo da depressão. Fui sugada pelo sistema, pela minha família, por uma vida que não acontece. Agonia e angústia nas tardes ensolaradas de Vitória me impedem de fazer qualquer coisa.

“Coisa”, minhas professoras de redação e português do ginásio não gostavam que usássemos essa palavra. Coisa. Ela pode ser qualquer “coisa” e nada. Tem palavra mais significativa para expressar algo que não significa ainda?

Dor na nuca senti enquanto escrevo. Sou ou não sou capaz? Acho que sou apenas cansada do esforço emocional, da carga emocional que tudo me causa. “Coisa” e “tudo”, duas palavras bem imprecisas. Impreciso é o meu querer, um desejo que é medo. Zona cinzenta da existência, ponto cego do ser. Onde me localizo.

Pensamentos são desconexos.

O tempo “passa”.

Remédios psiquiátricos.

Quero saber o significado das palavras “axioma”, “filologia”, “tautologia”, “mônada”.

Queria eu fazer algo perfeitamente. Saber algo perfeitamente. Mas a incerteza é uma sina com a qual temos que lidar. Pior quando a incerteza é dúvida, insegurança e vira doença.

Eu queria fazer um desenho bom da minha gata. Ficou estranho. Mas por que perder tempo com isso que não dá dinheiro? Minha profissão não é essa. Minha profissão é algo como jornalista e professora universitária. Mas não me sinto digna desses títulos. Não me identifico.

Sabe quando a gente ouve/vê pessoas empenhadas com um propósito profissional ou ideia, e tudo que a gente consegue sentir é desânimo e indiferença? Pois é...Somos todos tão mesquinhos.

O celular tem me feito tão mal! O que eles colocam dentro desse telefoninho? Tem um mundo, uma vivência paralela tão enganosa, procrastinante...

Quem trabalha com o intelecto se mistura com o seu trabalho, pensa ser ele, se gaba por um trabalho inteligente, “superior”. Não chega a objetificar o trabalho como deveria ser. Todo mundo tem que trabalhar. Todo mundo tem que se adaptar. Me humilhei. Fui humilhada. Sou uma pessoa humilhada por meu próprio engano.

Ontem brinquei como criança no mar e foi tão bom. O sol. O corpo. Meu corpo. Meus cabelos boiando como algas que balançam. Cabelos que eu quero cortar. Estão grandes, cheios, roubando a força do meu corpo sempre cansado, preguiçoso. O contrário de Sansão. Está um pouco branco perto da raiz.

De noite não durmo, coço o couro cabeludo compulsivamente até os dedos doerem. Amanhece. A luz entra pela janela e minha companheira dormindo ao meu lado. Sinto culpa, penso que noutro dia será diferente. Mas tudo se repete. Por isso no mar meu couro cabeludo ardeu pelo contato da pele arranhada com o sal.

Semana que vem vou recomeçar a dar aulas como professora substituta na graduação. E não consigo parar de pensar nisso, como eu queria que algo acontecesse para não ir mais. Nervosa por não saber direito o que ensinar, por não saber nada. Um psiquiatra me disse uma vez que eu poderia dar uma aula sobre não saber.

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Gosto de momento especiais e exclusivos como esse agora com minha gata Cecília. Até que enfim consegui me concentrar em uma leitura. Não estava conseguindo nada. Sentia desespero e as tardes quentes estavam me engolindo. Preciso me render à madrugada, sempre. Um sentimento muito ruim se apoderou de mim nas últimas semanas. Sentimento de inutilidade, de paralisia, de perda não sei do que.

Eu mudei. O fato é que de umas semanas prá cá eu percebi que mudei. Parece até que fiquei velha de repente. Velha de corpo, de saúde, falta de vitalidade como se fosse o fim da linha. Impressão. A cabeça tão cansada não produzia nem bons pensamentos, nada. Penso em minha mãe e sinto culpa.

Comi mais doces para reanimar. Agradando o corpo quem sabe ele reage? Ligar para ela foi pior. Perceber o quanto nos distanciamos emocionalmente dói. Ou eu mudei? Encenamos uma conversa de um minuto, me colocando no lugar da criança. Caretinhas, beijinhos...Ela está velha.

O passado tem me vindo em lembranças. Flashs de certos momentos ou em sonhos. Consigo pensar em mim como uma terceira, uma vida com começo, meio e o fim não se sabe ainda. Me pego pensando nisso um pouco surpresa. Como uma revelação me pergunto: “então isso é uma vida?” Algo estranho de se explicar esse sentimento.

O tempo sempre foi o aqui e agora. Meu nascimento é agora, minha infância, adolescência, meus pais, irmãs, tudo agora. Mas esse agora mais velha está contido na criança também? Será que existe mesmo uma ordem de acontecimentos?

Lembro do dia na escola, no ensino fundamental, em que passei ao lado do parquinho de areia em uma tarde cheia de sol, com o intuito consciente de  guardar esse instante para lembrá-lo quando fosse mais velha; como uma marca, uma prova de qualquer coisa. Como se duas de mim pudessem se reencontrar ali. Eu queria pegar a vida como se pega gotas de chuva pela janela. Eu era criança e captava a chuva com a língua por entre as grandes da janela do sexto andar. Sinto o gosto do ferro gelado.

Algo se feriu em mim e me desiludi. Desisti de fazer algo com muito esmero, um feito, uma elaboração. Uma escrita elaborada, digna de admiração. Não. Tudo isso é bobagem. Meu peito ficou aberto para a minha insignificância, fraqueza, impotência. Melhor sentir para fazer. Mesmo que seja não sentir nada, aquele vazio que se preenche com açúcar, álcool, leitura.

Às vezes é como se eu quisesse me preencher de algo para a aflição passar. Aflição de ser e estar em uma tarde infindável, mas apertada e cheia de dúvidas. Já senti medo de ficar louca. Minha nuca doeu  novamente quando comecei a tomar consciência de todos esses sentimentos e emoções. Poderia ter sido tão mais simples, o passado.

Estava precisando vomitar um pouco.

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Aqui estou eu com todas as minhas fragilidades, com o peito aberto um pouco doído, os músculos contraídos pela tensão de estar no espaço agora sob os olhares que me olham, talvez me julguem, me vejam inapta tanto quanto eu me vejo por dentro. De dentro para fora, de fora para dentro.

Preciso vomitar alguma escrita para me sentir inteira. Engolir e vomitar. Não é bulimia. Aos 16 anos, quase. Encher, encher, encher...esvaziar, esvaziar...encher.

Parece que preciso ler para existir com propósito, me fincar em algo, senão fica tudo nebuloso e o contato direto comigo é insuportável, chego a querer dissolver, sair de cena.

Artes plásticas, infância. A professora de artes do jardim da infância notou rindo o quanto na minha observação eu queria mergulhar o dedo no pote de tinta amarela. Certo dia comi tinta em casa. Minha mãe ficou desesperada. Passei mal o dia inteiro. Me vejo deitada no sofá, enjoada, assistindo TV. Também já comi areia no parquinho da escola, para impressionar as outras crianças e tentar fazer amigos. Experimento o atrito dos grãos em meus dentes. Não sei mais viver de outra maneira que não seja me preenchendo de alguma coisa ou me despindo de mim, de resquícios do corpo, peles do rosto, pés, do couro cabeludo...

Imaginava histórias enquanto me movimentava com um objeto maleável nas mãos. Tinha que ter certo comprimento. A ponta era importante, o seu balanço. Ainda hoje tenho vontade de fazer isso e me perco em histórias criadas na minha imaginação.

Com frequência as palavras lidas ou ouvidas me dão água na boca. Comer palavras seria possível? Argila, cimento, terra molhada, cheiro seco de folha queimada, fumaça, cigarro, álcool. Senão pode ser que eu flutue sem querer, de um jeito ruim, de não conseguir formular uma frase sem sentir sono em alguma interação.

 Penso na minha estupidez, no engano, na arrogância. Rejeitada em traumas do passado. Tapada. Deboche, desdém, a agressividade de quem não participa do jogo. Adulta esquiva, criança submissa. Será que querem me ver assim? Ciumenta? Sem um pedaço?

Eu desprezei as pessoas, com medo delas, as desdenhei. Ou era medo de mim?  Não posso mais concertar, tem coisas que não se concertam.

 


Mulher de rapina 

2021

Estatira estava no ônibus a caminho de Bertioga há uns 20 minutos quando, para passar o tempo, apanhou da bolsa o papel amarelado com as ilustrações de aves australianas. A folha, que parecia arrancada de um livro antigo de colecionador, aparecera misteriosamente há uns meses na gráfica onde trabalhava. Como ninguém reivindicou a propriedade do material, pegou-o para si. Desde então, desenvolveu considerável interesse por aves e ilustrações antigas. Uma verdadeira fixação por tais assuntos ganhou espaço em sua vida. Eram-lhe peculiares pensamentos e interesses obsessivos. 

Foi em um dia desses, tomada pela nova atração, que lhe ocorreu a ideia de entrar mais em contato com a natureza. Desejava ver de perto aves grandiosas, que não fossem os urubus que observava de sua janela, pousados no topo dos prédios em São Paulo. Não que não gostasse de urubus, muito pelo contrário, maravilhavam-na, assim como os condores, que habitam a Cordilheira dos Andes. “São injustiçadas as aves de rapina”, protestava. Pesquisou por passeios e encontrou Vila de Itatinga em Bertioga, o qual reservou por uma agência de ecoturismo. E lá estava ela, a caminho do litoral, em uma excursão que duraria apena um dia. 

Ao chegar na cidade litorânea, o grupo turístico rumou às margens do rio Itapanhaú, o qual atravessaram a barco para pegar o bonde na outra margem em direção à vila. Enquanto aguardavam pelo transporte, Estatira se afastou para observar a mata em volta. Distraiu-se, como o habitual, imaginando possíveis histórias na Serra do Mar. Retornou à estação e deu de cara com ela vazia. Os excursionistas pegaram o bonde e a esqueceram lá. Não se importou, pois sabia que não era do tipo de pessoa marcante, que faria falta em tão pouco tempo. Logicamente, esperou por outro bonde. Mas, passou mais de uma hora e nada! “A festa acabou, a luz apagou, o bonde não veio. E agora, José?”, citou Carlos Drummond em pensamento, julgando oportuno para a ocasião. Decidiu seguir o caminho do bonde a pé (7 km!) na esperança de encontrar pássaros pelo trajeto e fotografá-los. Porém, o tempo virou rapidamente. Nuvens negras descarregaram suas águas pela serra sem aviso. Assustada com o aguaceiro, adentrou a mata, deixando o caminho do trilho. 

Distinguiu ao longe uma mulher acenando. Uma senhora indígena que, após sinalizar com as mãos, entrou em uma oca. Estatira foi logo atrás, sem cerimônia, como se o encontro tivesse sido marcado. A mulher nada falou, nem a fitou nos olhos, apenas acomodou o corpo atarracado em uma cadeira ao fundo do aposento. Estatira observou o perfil daquela figura, o nariz adunco era semelhante ao bico de uma ave. “Ela toda parece uma periquita australiana”, concluiu.

O interior da oca abrigava uma espécie de exposição histórica sobre a região - ilustrações, recortes de jornais, fotografias, pedaços de livros e cartas. Foi então que Estatira soube que a Vila de Itatinga, e a usina hidrelétrica que a originou, fora construída por ingleses no começo do século XX. Entre as ilustrações expostas, havia muitas de aves. Estranhamente, algumas eram iguaizinhas às da sua folha amarelada, e continham a assinatura de Elizabeth Gould, uma inglesa. Também constavam ilustrações de outras autorias, de pássaros brasileiros, da Mata Atlântica, Amazônia, do Pantanal e da Caatinga. Impressionante foi descobrir ali desenhos de aves de Galápagos, retirados de partes da obra de Charles Darwin, assinados pela tal Elizabeth Goud! Tudo parecia melhor do que se tivesse visto os animais ao vivo, supôs. 

Absorta em tanta informação, esqueceu por uns instantes a presença da senhora ao fundo, até o momento em que sons de grandes penas em movimento invadiram o espaço. Voltou o olhar para a índia e não pôde acreditar no que via diante de si. A mulher se transformava em uma enorme ave! Os dedos dos pés encurvavam, os braços criavam penas pretas e brancas e uma cauda de plumas surgia. O mais fantástico foi a transfiguração do rosto. A mulher mirou fixo os olhos de Estatira. Esta viu crescer um longo topete na cabeça da ave. As feições prontas ainda lembravam um rosto humano. “Harpia!”, Estatira gritou em pensamento. A velha era uma harpia! Rapinante rara por ali. Experimentou encanto, mas também medo, principalmente quando o bicho impetuosamente passou a engolir tudo o que via pela frente, inclusive a própria oca. Fechou os olhos, temendo ser devorada. Encolheu- se no chão e percebeu uma grande ventania. Por pouco não saiu voando. Quando conseguiu levantar o corpo, pôde avistar a harpia longe no céu, já livre de nuvens 

Em São Paulo, Estatira não conseguia lembrar se continuou o passeio para a vila depois. Ignorava como voltou para casa, tamanho atordoamento. Não contou para ninguém o ocorrido, pois descreriam. Além do mais, não possuía amigo ou parente próximo a quem pudesse confiar a história. Ninguém soube. A vida seguiu como de costume. E Estatira continuou adquirindo obsessões. 

 “Ela tinha uma certa fragilidade física [...]”

 2019

Essa frase de Truffaut na obra em que ele entrevista Hitchcook ficou na minha cabeça depois daquela aula de linguagem audiovisual. Não exatamente assim, pois lembrava dela de outro jeito, algo como: “ela tem uma fragilidade que as outras não têm”.  O cineasta francês compara as atrizes Joan Fontaine com Ingrid Bergman e Grace Kelly. O argumento era o de que a fragilidade da atriz a tornava mais adequada para o papel de protagonista do filme Rebecca, de Hitchcock. Imagino que tal julgamento não teria sido aplicado a um artista homem. Nesse caso, ele teria separado o ator de sua personagem.


Naquela aula, eu trouxe aos alunos um vídeo sobre o filme Suspeita, igualmente dirigido por Hitchcock e protagonizado por Joan, no papel de Lina. Inclusive, a atuação rendeu à atriz um Oscar na época. Também selecionei uma cena de Rebecca para um exercício. A personagem de Joan, uma recém-casada cuja nome não é mencionado durante toda a obra, entra pela primeira vez na mansão onde vai morar. Ela está acompanhada do marido, um viúvo, que viveu na mesma residência com a primeira mulher chamada Rebecca. Os criados, dentre eles a governanta leal à antiga chefe, esperam a nova patroa na sala da casa. Ao entrar, a jovem fica visivelmente nervosa e insegura quando se depara com a fileira de empregados, enquanto a governanta, senhora Danvers, impõe-se com postura e olhar autoritários.


A atividade foi meio improvisada. Pedi a eles que observassem a cena e descrevessem os planos. Mas, diante da impossibilidade de eles anotarem no escuro, deixei que apenas assistissem e depois imaginassem o trecho novamente com os planos que lhe parecessem coerentes. Não liderei a situação como eu gostaria. Estava vulnerável diante daqueles olhares confusos e desconfiados dos alunos. Observavam-me como se soubessem o que eu mesma nem havia percebido ainda. Era eu uma metáfora da cena ou a cena uma metáfora de mim naquele momento?   


Uma aluna apresentou a sua versão. Segundo ela, a recém-casada deveria se impor, não se abater pela postura da governanta. A jovem olharia os criados do alto da escada - contra-plongée em primeiro plano na atriz e plongée em plano de conjunto nos empregados abaixo.  De quem ela estava falando afinal? Da recém-casada ou da professora iniciante? Que história ela queria reescrever? Somente me fiz essas perguntas no carro, quando ia embora para a casa.


No final da aula, os alunos iam embora depois de entregarem a atividade na minha mesa. Um deles, um rapaz que sempre assistia às aulas com os olhos vermelhos e lacrimejantes, aproximou-se. Outro dia ele havia me cumprimentado dando a mão, como pensei que fosse fazer novamente. Mas, dessa vez sua mão se dirigia ao meu rosto. Não tive reação. Em uma atitude reprovável na relação professor e aluno, ele tocou em meu queixo como quem faz um carinho em alguém próximo. Eu nada fiz, abaixei a cabeça constrangida. Devo ter ficado vermelha, senti a quentura na face. Ouvi uma aluna, a mesma que reescreveu a cena, chamar a atenção do rapaz: “Você tá louco? Você encostou na professora!”. Admirei a reação em minha defesa, mas, era eu quem deveria ter reagido. Eu, a professora.


“Ela tem uma fragilidade que as outras não têm”.


Li no mesmo livro de entrevista com Hitchcock que Alma Reville, esposa do cineasta, foi uma das autoras do roteiro de Suspeita. Soube depois que ela sempre contribuía nos filmes do marido e quase nunca era creditada. Será que Truffaut também diria que ela tem uma fragilidade diante de Hitchcock, que a fazia adequada para tal submissão? Como a minha aluna teria reescrito essa história?


Faço esses questionamentos dentro de mim e, sem nunca ter aprendido, tento encontrar caminhos para me reescrever. Para atuar em primeiro plano, primeiríssimo plano, em ângulo normal ou até mesmo contra-plongée quando a situação exigir. Penso em como historicamente as mulheres nunca foram educadas para se impor. As mulheres negras então...Uma colega de trabalho me contou algumas de suas experiências. Por ser negra, ela enfrenta dupla desconfiança em relação à sua capacidade.  A mulher negra e periférica - a mais vulnerável socialmente e desprovida de subjetividade em suas representações midiáticas - deve ter muito mais o que relatar a respeito. São lutas sociais, diárias e existenciais.