Sobre a figura mitológica Lilith


Liliths

As desigualdades entre homem e mulher forjadas pelo patriarcado estão presentes nos relatos mais antigos da humanidade, como as cosmogonias pré-cristãs. Lilith, uma das mais antigas concepções femininas, é emblemática nesse sentido. Apagada de muitas narrativas bíblicas, mas presente no imaginário coletivo, representa algo que tentamos resgatar a todo tempo enquanto mulheres.


Ela é parte da mitologia da antiga Suméria, uma das primeiras civilizações da humanidade, em cuja língua seu nome significa alento, sopro divino, segundo a socióloga mexicana Martha Robles (2006)¹. Lilith - que atravessou o politeísmo, o monoteísmo e o judaísmo pós-bíblico - é considerada a primeira mulher de Adão.


De acordo com o alfabeto de Ben Sira (ROBLES, 2006), ela foi criada do barro, assim como Adão, e não se deixou submeter pelo parceiro. Na verdade, Adão não permitia que ela o montasse no ato sexual. Contrariada, Lilith abandona o jardim do Éden e é castigada por meio de seus filhos. Desde então, passou a se vingar matando crianças recém-nascidas.


Um demônio noturno, a paixão da noite, anjo exterminador das parturientes, assassina de recém-nascidos, sedutora dos adormecidos, uma prostituta voluntariosa ou, para um juízo mais são, uma vontade poderosa que não se dobra diante da pressão masculina e prefere a transgressão à vassalagem. Lilith é ímpeto sexual, mulher emancipada e em fuga, sombra maligna por se haver considerado em pé de igualdade com os homens. (ROBLES, 2006, s.p.)

Em O livro dos seres imaginários (2007), o escritor argentino Luis Borges² recorre a um texto hebraico que diz “Porque antes de Eva foi Lilith”. De acordo com o autor, a lenda antiga se refere a ela como uma serpente, mulher de Adão, que resolveu se vingar ao ser substituída por Eva. Na Idade Média, segundo o texto de Borges baseado na obra Eden Bower do poeta inglês Dante Grabriel Rossetti (1828-82), Lilith passa a ser vista como um espírito noturno, que às vezes toma a forma de um anjo, noutras de demônio.


Chama a atenção esse caráter duplo. Robles (2006) traz referências similares, além de mencionar fontes cabalistas que citam uma Lilith velha e outra nova³. A autora também apresenta associações de Lilith com vampiros e outras que a colocam como habitante das profundezas dos oceanos.


A dualidade faz parte das características das deusas primitivas, o que foi substituído posteriormente pelo culto da bondosa Virgem Maria no Cristianismo, especialmente na América Latina em suas várias aparições.


Mas, o dualismo de um feminino ameaçador não deixou o inconsciente humano, de acordo a teoria do inconsciente coletivo de Carl Gustav Jung (2008). Dentre outros arquétipos4, Jung apresenta a anima (alma), boa e má ao mesmo tempo e que está relacionada a uma sabedoria oculta, embora assustadora muitas vezes.


Ela vem ao nosso encontro sob a forma de uma ninfa, mas se comporta como um súcubo; ela assume as mais diversas formas, como uma bruxa, e é de uma autonomia insuportável que, a bem dizer, não seria própria de um conteúdo psíquico. (JUNG, 2008, p. 35).

Lilith aparece de variadas maneiras em culturas e tempos diversos. Do mesmo modo, tudo o que ela representa culturalmente é analisado por diferentes áreas do conhecimento.

Podemos relacionar Lilith com as “bruxas”, mulheres heréticas da Idade Média e com o medo do corpo feminino expresso na medicina da Idade Moderna, que acreditava que o sangue menstrual era venenoso, por exemplo.


Hoje vemos ataques conservadores e machistas ao feminismo e a mulheres fortes, em geral, que fogem das normas patriarcais. É a Lilith se manifestando e as reações que a difamam.


1 ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos. São Paulo: Aleph, 2006

2 BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

33 “O cabalista do século XIII Yitshaq ha- Cohen e seus sucessores separam-na em duas: Lilith a Velha, esposa de Sama'el, e a Jovem Lilith, unida a Asmodeos, outro dos principais demônios, também conhecido como Ashmed'ai [...]”. (ROBLES, 2006, s.p.)

4 “O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta”. (p.17). Jung explica que os arquétipos podem se manifestar em sonhos, mitos e contos de fadas, por exemplo.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2008