Contos de fadas e análise da individuação feminina Perspectiva da psicologia analítica junguiana


Narrativas como interpretação do mundo e de nós mesmos

Todas as narrativas têm relação com o seu contexto social, cultural e também com a psique humana. Com os mitos, lendas e contos de fadas não é diferente. É fascinante a forma como esses relatos atravessam os tempos e se conectam entre si por mais que sejam de regiões diferentes.


Como alguns estudiosos demostraram, personagens e seus percursos comumente se repetem com algumas variações. Por exemplo, elementos básicos do conto Cinderela¹ estão presentes em muitos outros, como o egípcio “a princesa com a roupa de couro” coletado pela escritora inglesa Angela Carter.


Na verdade, a primeira Cinderela que se tem registro é a chinesa Yeh-Hsien de 850 d.C. Existem muitas outras como a francesa Cendrillon, a croata Pepeljuga, a protagonista do conto inglês Casaco de Musgo, a norueguesa Katie Woodencloak e a italiana Cenerentola. Na contemporaneidade também é uma constante enredos baseados na Cinderela, vide as mocinhas injustiçadas de telenovela, conforme observou a acadêmica Heloísa Buarque de Almeida. Geralmente elas passam por uma série de provações até conquistarem o que desejam no final, como uma ascensão amorosa ou financeira.²


A frequente presença da madrasta e de crianças órfãs nos contos de fadas é atribuída por Carter ao contexto histórico de instabilidade, quando a taxa de mortalidade das mães era muito alta e uma criança poderia ter várias madrastas durante a vida. A crueldade atribuída a essa personagem também simboliza a ambivalência da figura materna, de um modo geral, em termos psicológicos.


Há questões que ultrapassam as barreiras sociais/materiais e se conectam com o íntimo do ser humano, com os arquétipos e o inconsciente coletivo teorizado por Jung. De acordo com Christopher Vogler³, autor de A Jornada do Escritor, o arquétipo do herói se relaciona com o ego. “No processo de nos tornarmos seres humanos completos e integrados, somos todos Heróis, enfrentando guardiões e monstros internos, contando com a ajuda de aliados”.

Diana Barros, por sua vez, expõe que: “As estruturas narrativas simulam, por conseguinte, tanto a história do homem em busca de valores ou à procura de sentido quanto a dos contratos e dos conflitos que marcam os relacionamentos humanos”.

As sagas de iniciação feminina nos contos de fadas seriam trajetórias de amadurecimento da heroína. Elas remetem às mais antigas mitologias, por exemplo a grega Deméter e sua filha Core, posteriormente Perséfone. Nos textos abaixo, trato a condição triádica desse mito e sua influência em contos como o alemão Mother Hole e o russo Vasalisa.

Referências

ALMEIDA, Heloisa Buarque de. Telenovela, consumo e gênero. Bauru, SP: EDUSP, 2003.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. 2011. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo, Ática, 96 p.

CARTER, Angela. A menina do capuz vermelho e outras histórias de dar medo. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2008

ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos. São Paulo: Aleph, 2006.

TATAR, Maria (Org). The annotated brothers Grimm. WW Norton & Company: New York, 2004.

VOGLER, C. A Jornada do Escritor. Tradução: Ana Maria Machado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

1 A versão mais famosa é a alemã dos irmãos Grimm. Sua coleção de contos de fadas de 1812 e 1815 se tornou a fontes autorizada dos contos de fadas, junto da publicação do francês Charles Perrault de 1697. Mas os contos misturam, normalmente, discursos de diferentes culturas.

2 Eu analiso a ascensão de uma personagem de telenovela no artigo acadêmico O modelo da “mocinha” em ascensão social: proposta de análise semiótica de personagens na teleficção

3 Autores como Jung, Campbell e Vogler tratam das personagens por uma perspectiva masculina. As personagens femininas são colocadas como um objeto a ser conquistado. Silvia Oroz, Maureen Murdock e Victoria Lynn Shmidt trazem o protagonismo feminino.


Individuação feminina nos mitos e contos de fadas


Nos contos de fadas, sagas de transformação feminina remetem a antigas mitologias (anteriores à idade cristã) e à psique humana. Vou abordar, de maneira breve e pela ótica junguiana, a referência à história de Deméter/Core (Perséfone) nos contos alemão Mother Holle e o russo Vasalisa. Ambos coletados no século XIX, o primeiro pelos irmãos Grimm e o último por Alexander Nikolayevich Afanasyev.


No sentido psíquico que pretendo tratar, a ideia de arquétipo é fundamental.

"O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta." (JUNG, 2008, p.17).


Nessa perspectiva, a jornada da heroína se relaciona com o percurso de individuação da psique feminina, do equilíbrio entre consciente e inconsciente. O arquétipo materno é constante nessas histórias.


Passemos à narrativa de Deméter e Core.

Deméter, da mitologia grega, é a deusa da agricultura, mãe de Core que é raptada por Hades, deus do inferno. Core casa-se com Hades, muda seu nome para Perséfone e vira rainha do Tártaro, o mundo inferior. Deméter à procura da filha ameaça não fornecer mais cereais aos homens. Para satisfazer sua mãe e impedir que ela cesse o fornecimento de alimento, Perséfone passa a viver três meses por ano no submundo e nove meses na Terra com sua mãe, acompanhada da deusa Hécate.


O arquétipo da mãe aqui se relaciona não só com Deméter e Hécate, mas também com a simbologia da agricultura em Deméter. Hades representa o animus (aspecto masculino inconsciente) que precisa ser conscientizado para o crescimento psíquico que, por sua vez, deve se desvincular do materno muito protetor e infantil.


O inconsciente geralmente é expressado pelo escuro, o que está abaixo, fundo das águas, meio do mato e noite. No caso do mito de Core é o Tártaro. A Hécate, como guardiã de Perséfone vinda do submundo, é uma espécie de contraponto materno que representa transformação e um ponto de convergência entre consciente e inconsciente, assim como a própria troca de nome de Core. Como Perséfone ela volta à companhia da mãe durante nove meses ao ano, mas transformada.


No mito, os três meses no Tártaro correspondem ao inverno, momento de maior escassez agrícola. De acordo com Jung, quando o homem mitologiza fenômenos físicos, como as estações do ano, ele está projetando no exterior os seus dramas interiores.


Mudemos para Mother Holle

Neste conto, há a figura da madrasta, como é recorrente nos contos de fadas. Uma viúva tem duas filhas, mas apenas uma delas é biológica. Esta é a preferida e também a mais preguiçosa e menos bela. A outra é a encarregada das tarefas domésticas e costuma fiar na beira de um poço até os dedos sangrarem.


Certo dia, a menina trabalhadeira decide lavar o seu fuso de fiar sujo de sangue, mas ele cai no fundo do poço. Quando conta o ocorrido para a madrasta, a mulher ordena que ela resgate o objeto. A menina obedece, mas sem saber direito o que fazer, simplesmente pula no poço e desmaia. Quando acorda, ela se encontra deitada em uma pradaria, pela qual caminha e se depara com um forno cheio de pães. Estes pedem para serem retirados do forno caso contrário queimarão. A menina retira um a um e continua a andar, quando uma árvore carregada de maçãs pede para ser sacodida, pois seus frutos estão maduros. A garota atende, empilha as maçãs e segue até encontrar uma casa.


É a residência de Mother Holle, uma velha com dentes enormes. A menina se assusta, mas a velha é inofensiva e pede à garota que faça suas tarefas domésticas em troca de comida e abrigo. Um dos afazeres era chacoalhar o edredom até suas penas voarem, o que Mother Holle explica ser a forma da neve chegar à Terra. A garota realiza todos os serviços, recupera o seu fuso e quando vai embora, ao passar por um portão, é banhada de ouro da cabeça aos pés. Essa foi a recompensa por ter se esforçado no trabalho.


Quando chega em casa, a madrasta manda a outra filha descer até o fundo do poço, imaginando que terá a mesma sorte da primeira. Porém, como essa é preguiçosa e não cumpre bem as tarefas domésticas pedidas por Mother Holle, ao invés de ouro é banhada com piche, que gruda em seus cabelos para sempre.


Maria Tatar (2004) identifica nesse conto referências ao mito da Core pelo fato de a protagonista enfrentar uma espécie de rito de passagem em um lugar distante de casa; e também nas penas do edredom que se transformam em neve, em alusão ao período de inverno no qual Perséfone permanece no submundo. Tatar reconhece na narrativa a conquista da independência financeira conseguida com a ajuda de Mother Holle e simbolizada nos momentos de transição dos pães e das maçãs.


Assim como Jung destaca Hécate e Deméter como figuras maternas superiores, é possível considerar Mother Holle da mesma maneira. Trata-se de um arquétipo materno elevado, que dá forças para a garota se liberar da situação ruim que vivia com a madrasta e a irmã. É importante notar o fato de Mother Holle ser descrita como velha e feia (comumente como as bruxas), mas ao mesmo tempo boa. Tem-se aí uma herança da cultura politeísta da Antiguidade, quando os deuses eram ambíguos - bons e maus.


Outros elementos podem ser associados ao arquétipo materno neste conto, de acordo com a teoria junguiana. São eles: a pradaria, o poço, o forno e a árvore. Como o local onde se encontra Mother Holle é o inconsciente (o fundo do poço), as várias simbologias maternas aqui são referências ao resgate do animus, do poder de produção, do fornecimento de frutos, de alimentos e provimento financeiro. Também merece destaque o sangue no fuso de fiar como figurativização da menstruação e perda da virgindade que, por sua vez, remetem ao crescimento e à transformação.


A tríade mãe-jovem-deusa está tanto no mito de Core, como no conto Mother Holle. Neste último seria madrasta – jovem-deusa.


Tatar também trata da semelhança entre Mother Holle e a Baba Yaga russa.

Referências

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2008

ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos. São Paulo: Aleph, 2006.

TATAR, Maria (Org). The annotated brothers Grimm. WW Norton & Company: New York, 2004.


Percurso de iniciação feminina no conto Vasalisa

Minha abordagem sobre a iniciação feminina no conto russo Vasalisa é baseada em Mulheres que correm com lobos de Clarissa Pinkola Estés (1994), escritora e psicóloga junguiana. Neste livro, a autora traz diversas histórias para tratar da força feminina e da necessidade de a mulher se reconectar com o que ela chama de natureza selvagem.


Uma delas é a de Vasalisa, que me chamou muito a atenção quando li a obra pela primeira vez em 2009. As análises feitas por Clarissa Estés levam em consideração a psique de uma única mulher, ou seja, todos os personagens e elementos da narrativa são símbolos psicológicos, de acordo com a perspectiva de Jung dos arquétipos e inconsciente coletivo.


Vamos ao conto. Vasalisa, uma garota doce e obediente, ganha de sua mãe moribunda, um pouco antes de morrer, uma pequena boneca, à qual deve pedir ajuda sempre que precisar, além de levar consigo para todos os lugares e alimentar quando sentir fome. Também é aconselhada pela mãe a não falar sobre a boneca com ninguém.


Viúvo, o pai se casa novamente com uma mulher que tem duas filhas. As três não gostam de Vasalisa, tratam-na como criada e com desprezo. Certo dia, elas combinam de deixar a lareira se apagar para mandar Vasalisa ir à floresta pedir fogo a Baba Yaga, bruxa que mata e come pessoas.


A menina inocentemente obedece. Apesar do medo, no meio da mata escura, ela conta com sua boneca em seu bolso para lhe indicar as direções corretas, enquanto a alimenta com um pouco de pão. No caminho, o dia nasce assim que um homem de branco passa em um cavalo branco, o sol aparece após a passagem de um homem de vermelho montado num cavalo vermelho, e quando atravessa um cavaleiro de negro em um cavalo negro a noite cai.


Enfim, chegam ao destino desejado, a morada de Baba Yaga, cercada por caveiras e ossos com fogo interno. A casa fica em cima de grandes pernas de galinha que andam e giram. Dedos humanos e focinho com dentes pontiagudos servem de cavilhas (para portas e janelas) e tranca de porta, respectivamente. Baba Yaga, feia e velha como toda bruxa de contos de fadas, voa em um caldeirão e rema o ar com um pilão. Também varre o próprio rastro com uma vassoura feita de cabelo.


Ao ser vista e abordada pela velha, com auxílio da boneca, Vasalisa solicita à bruxa o que procura – fogo. Mas em troca Baba Yaga ordena que a menina lhe faça alguns trabalhos e a ameaça de morte caso não sejam realizados a contento. As tarefas são: lavar sua roupa, varrer a casa e o quintal, preparar comida e separar o milho mofado do milho bom.


A boneca sugere que a menina durma e se responsabiliza pelos deveres, realizando-os com eficiência. Baba Yaga se surpreende com tudo feito e convoca seus criados (três pares de mãos) para moer o milho. Depois de comer, manda a menina no dia seguinte limpar a casa, varrer o quintal, lavar a roupa e separar as sementes de papoula de um monte de estrume. Novamente a boneca se incumbe de tudo. E mais uma vez, vendo tudo certo, Baba Yaga chama os seus criados, as mãos, para prensar o óleo das sementes.


Em seguida, a menina faz algumas perguntas à bruxa. Ela quer saber quem eram os cavaleiros vistos antes pela floresta, ao que Yaga responde ser o seu dia o homem branco no cavalo branco, o seu sol nascente o de vermelho e a sua noite o de negro. Apesar do incentivo da própria velha, a menina não faz mais questionamentos, aconselhada pela boneca.


Por fim, Baba Yaga apanha da cerca de sua casa uma caveira cuja luz do fogo sai pelos olhos, nariz e boca; enfia-a numa vara e entrega à menina. A garota pega o objeto e vai embora sem agradecer, por indicação de sua companheira secreta. No caminho de volta também a boneca lhe guia. Chegando em casa, a menina se sente vitoriosa. Por sua vez, a caveira queima por dentro a madrasta e suas filhas só de olhá-las, reduzindo-as a cinzas.


Estés explica que essa história diz respeito à herança da intuição por gerações de mulheres e elenca nove tarefas desempenhadas: deixar a mãe boa demais morrer; conviver com a sombra; navegar nas trevas; encarar a megera selvagem; servir ao não racional; separar isso daquilo; perguntar sobre os mistérios; ficar de pé nas quatro patas; e reformular a sombra.


Deixar a mãe boa morrer dentro de nós faz parte do ciclo vida-morte-vida. É preciso despertar e combater a ingenuidade rumo a uma vida mais plena. Para isso, o convívio com a sombra é necessário e, aqui, diz respeito ao relacionamento com a madrasta e suas filhas. De acordo com Estés, elas podem ser consideradas “criaturas inseridas na psique da mulher pela cultura à qual ela pertence” (1994, p.103). Essas figuras representam a autodepreciação, falta de confiança e outros elementos pertencentes ao superego que restringem, censuram e bloqueiam.


No caminho de ida à mãe selvagem, a intuição assume papel fundamental, figurativizada pela boneca. Estés aponta para a importância da boneca na cultura humana desde a antiguidade, por exemplo no uso em rituais, na louvação à raiz de mandrágora por sua semelhança ao corpo humano e nas imagens do período paleolítico e neolítico.


A socióloga e escritora Martha Robles comenta sobre um cerimonial litúrgico da Grécia antiga no qual camponeses costumavam enterrar uma boneca feita de cerais no inverno para desenterrar na primavera. A autora relaciona esse ritual com o mito de Deméter-Cores-Perséfone. “Esse costume sobreviveu no campo durante toda a época clássica e, com algumas variações, nas zonas rurais da região balcânica até a Idade Média.” (ROBLES, 2006, s.p.).


Nos contos de fada, Éstes explica que a boneca se conecta com os símbolos do duente, elfo, fada e anões. São criaturas sábias que estão sempre trabalhando até quando nós dormimos. Por exemplo, os elfos do conto dos Irmãos Grimm ( TATAR, 2004), descritos como homens bem pequenos que fazem secretamente, durante a madrugada, os sapatos para um sapateiro. Curiosamente, também o leprechaun irlandês é uma espécie de duende cujo ofício é sapateiro.


No encontro com a megera selvagem, a casa de Yaga chama a atenção. Ela tem pernas de galinha, anda e dança. Faz parte do mundo animal que convida a mente a sair da normalidade em demasia. Estés lembra que em sonhos a casa simboliza a organização do espaço psíquico.


A tarefa de servir ao não racional se refere às ordens dadas por Baba Yaga, como lavar roupa, varrer o quintal e preparar a comida. Lavar remete à purificação e renovação. E as roupas são interpretadas como a persona. Esta é o modo como o ser humano se apresenta para os outros, faz parte da nossa faceta social e da aparência.


Estés menciona neste ponto as parcas, ou moiras, pela sugestão do tecido das roupas a serem lavadas. As moiras são, segundo a estudiosa, as mães da vida-morte-vida. Elas fabricam, tecem e cortam o fio da vida. O que deve viver ou morrer nessa lavagem de roupa simbólica do conto?


Varrer, por sua vez, é limpar o espaço de resíduos e organizar o ambiente psíquico. Ao passo que, quando tudo está ajeitado, é possível cozinhar, o que requer fogo e criatividade. Trata-se do preparo do alimento para os nossos relacionamentos psíquicos.


Na sexta etapa, a habilidade do discernimento permite separar isso daquilo. Nem todos os milhos são bons e as sementes de papoulas estão misturadas ao estrume. Além de identificar o que nos faz bem no meio de outras coisas que não prestam em nosso pensamento, separar faz parte do trabalho.


A tarefa de perguntar sobre os mistérios compreende os três cavaleiros com três cores diferentes. Eles representam o nascimento, a vida e a morte. O negro como símbolo da morte traz aspectos positivos de mudança e dissolução de antigos valores. Como imagem do inconsciente, o escuro significa o espaço de informações e percepções escondidas e que podem emergir.


“A Yaga, como Deméter, é uma velha deusa mãe-de-cavalos, associada à força da égua, bem como à sua fecundidade. O casebre de Baba Yaga é uma cocheira para os cavalos multicores e para seus cavaleiros” (1994, p. 121).


Na mitologia grega, Deméter, ao procurar pela filha Perséfone (antiga Core sequestrada por Hades) se transforma em égua. Interessante que Estés encontra associações da história com mito grego Deméter-Core-Perséfone, assim como faz a acadêmica Maria Tatar (2004) no conto de fadas alemão Mother Holle.


Estar em pé nas quatro patas expõe a ascensão da iniciação e incorporação de um eu primitivo - em pé (humano) nas quatro patas (selvagem). Neste momento há a conscientização, aquisição de sabedoria e segurança. A caveira incandescente representa a luz do conhecimento.


O último estágio é a reformulação da sombra, que corresponde na história à queima da madrasta e suas filhas. A queima se dá pelo olhar da sabedoria. Não basta enxergar o problema, pois com a observação vem a responsabilidade de encarar o que precisa ser mudado, no caso o julgamento pernicioso.


A tríade, assim como em Mother Holle e no mito de Deméter-Core-Perséfone, encontra-se presente no conto Vasalisa de diversas formas. Está nas figuras maternas mãe-madrasta-Baba Yaga; nos elementos que se relacionam à sabedoria vinda à tona, boneca-Yaga-caveira; nas cores e suas representações, branco(nascimento)-vermelho(vida)-negro(morte); na sombra, madrasta-duas filhas; e no próprio processo de iniciação, vida-morte-vida (as Moiras). Os criados de Baba Yaga também são três pares de mãos.


Como mencionado em texto anterior, o conto de Vasalisa é semelhante ao Mother Holle (e ambos apresentam referências ao mito de Deméter-Core-Perséfone). Os dois manifestam o arquétipo materno, entre outros, tratam do processo de crescimento feminino, da aquisição de algo que não se tinha antes (sabedoria e independência) e apresentam provações à heroína pelo percurso, que são as tarefas a serem realizadas.


Esses não são os únicos contos que tratam da iniciação da heroína, há muitos outros semelhantes, o que revela a importância dessa temática no momento social em que essas histórias foram criadas e disseminadas oralmente. Não podemos esquecer dos aspectos culturas e sociais dessas narrativas, o que não exclui a possibilidade de uma análise pela psicologia analítica e arquetípica.


Afinal, como Jung (2008) expôs ao argumentar a respeito, os arquétipos são determinados de um modo limitado pela expressão formal e não pelo conteúdo. “Tais imagens são ‘imagens primordiais’, uma vez que são peculiares à espécie, e se de alguma forma foram ‘criadas’, a sua criação coincide no mínimo com o início da espécie” (2008, 90).


Ou seja, não deixam de ser produtos culturais como tudo que é humano. Uma exploração pelo prisma psicológico não se contrapõe a uma análise discursiva, capaz de apreender o contexto e o signo ideológico. Apenas se difere dela.



Referências

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2008

ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos. São Paulo: Aleph, 2006.

TATAR, Maria (Org). The annotated brothers Grimm. WW Norton & Company: New York, 2004.