Novela e semiótica
Novela e semiótica
O símbolo das Três Graças na novela das nove
Mitologia, religiosidade e percurso narrativo feminino fazem parte da atual novela das nove da Globo, Três Graças, de Aguinaldo Silva, uma trama cheia de intertextualidade cultural. A novela faz referência às Três Graças da mitologia grega – as divindades Euphrosynè, Aglaia e Thalía - filhas de Zeus com Eurínome. No poema Teogonia de Hesíodo (do século VIII a. C.), elas estão relacionadas com uma beleza capaz de provocar amor e desejo; e são associadas às nove Musas (deusas inspiradoras da arte), com as quais participam de festas. Seus nomes são associados a esplendor (Aglaia), alegria (Euphrosynè), festa e opulência (Thalía). As Três Graças foram representadas em pinturas e esculturas famosas, como em obras do artística renascentista Botticelli e as esculturas de Antonio Canova e Bertel Thorvaldsen (ambas do século XIX).
Na novela, há uma escultura das Três Graças muito valiosa, feita por um artista fictício de Florença. Comprada por Rogério, personagem desaparecido misteriosamente, a estátua que antes decorava a sala de sua mansão foi deslocada a um quarto secreto pela viúva e vilã Arminda. Além do próprio valor, a obra é usada para guardar dinheiro de um esquema de corrupção da vilã junto de seu amante, Ferette, cuja fundação desvia verbas públicas e falsifica remédios.
Além da estátua, as Três Graças também são representadas pelas três personagens protagonistas boas – Lígia Maria das Graças, Gerluce Maria das Graças e Joélly Maria das Graças –, avó, mãe e filha. Gerluce, que trabalha como cuidadora da mãe da vilã na mansão, recorre à polícia para denunciar o esquema dos remédios falsos, mas não obtém sucesso. Sem esperanças e cheia de problemas, após saber do valor milionário da estátua, Gerluce planeja o roubo da obra de arte para usar o dinheiro com remédios verdadeiros para os moradores da comunidade Chacrinha onde ela mora. Inclusive, sua mãe Lígia, gravemente doente, é uma das vítimas dos remédios falsificados da Fundação Ferette. Com essas três mulheres, as Três Graças adquirem um aspecto religioso, pois o nome Maria se refere à mãe de Jesus, e a palavra “graças” tem o sentido de bençãos.
A religiosidade é evidente na trama, católicos e evangélicos têm representação. Gerluce, por exemplo, é devota de Santa Rita de Cássia, a quem ela pede aprovação para o roubo da estátua (a santa dá um sinal positivo). Na abertura da novela, as três personagens aparecem como as Três Graças da escultura, mas a música Clareou aborda um deus cristão, o refrão diz: “Deus é maior, maior é deus e quem tá com ele nunca está só. O que seria do mundo sem ele”.
A estátua das Três Graças representa a salvação e a subversão da heroína Gerluce. O dinheiro poderá salvar a sua mãe e vários moradores da sua comunidade, mas ela precisa roubar para isso. Simbolicamente, a subversão está presente ainda antes, desde o momento em que a personagem demonstra curiosidade pelo cômodo da estátua, onde a patroa não permite a entrada. A primeira vez que Gerluce olha para dentro do quarto, quando encontra a porta acidentalmente aberta, seu estado é de maravilhamento. Para entrar no recinto ela pega escondido o molho de chaves. É perceptível a semelhança com histórias de contos de fadas, como Barba Azul, na qual a jovem esposa do Barba Azul, na ausência do esposo, é proibida de usar uma chave que abre um quarto secreto no castelo em que moram. Ela é vencida pela curiosidade, abre o quarto e encontra os esqueletos das primeiras esposas do Barba Azul. Ela tenta esconder o feito, mas a chave fica permanentemente manchada de sangue. Estudiosos identificaram nessa história elementos que simbolizam a sexualidade feminina, sua curiosidade e punição.
O estado de maravilhamento inicial de Gerluce com a obra de arte Três Marias é parecida com a contemplação da vilã Arminda, que costuma adular a escultura, e até mesmo usa produtos de limpeza para conservá-la, o que contrasta com o seu ethos de madame. Isso reforça o caráter subversivo do quarto e da própria obra de arte, pois é um espaço e um conteúdo reservados e admirados pela pessoa mais inescrupulosa da trama, sem contar a relação do objeto com o personagem desaparecido (assassinado?). É como se fosse um submundo que a mocinha deve percorrer para se transformar, em um processo de perda da inocência e aquisição de conhecimento e liberdade. Aliás, o número três pode ser associado a transformação, sobretudo se nos atentarmos às três mulheres de uma mesma família e de gerações diferentes. Vide o mito grego de Core, filha de Deméter, que se transforma em Perséfone após se tornar rainha do Tártaro, o mundo inferior.
Interessante que a estátua das Três Graças reflete o universo pagão da mitologia grega, diferente da devoção católica de Gerluce, representada pela pequena estátua de Santa Rita de Cássia em seu quarto. Além disso, Gerluce namora um jovem policial, mas não conta para ele sobre os remédios falsificados. Ela pretende agir por conta própria com ajuda de amigos, o que discursivamente opõe a justiça como instituição na qual não se pode confiar (representada por homens aqui) e a justiça como virtude maior que ela busca. Essa jornada marcadamente feminina chama a atenção nessa novela. Simbolicamente, a transformação de Gerluce depende do encontro com um feminino profundo e pagão? Esse polo pagão de maravilhamento abriga o poder do dinheiro, a corrupção e a relação amorosa imoral entre os amantes Arminda e Ferette. Quais serão as consequências desse encontro na vida de Gerluce e na trama? Veremos.