Novela e semiótica
Novela e semiótica
O percurso da empregada doméstica na telenovela pelo viés da semiótica
Em texto anterior eu tratei da ascensão da mocinha de telenovela pela semiótica greimasiana. Agora eu vou abordar outra personagem de telenovela pelo viés da semiótica, a empregada doméstica. Apesar de ser, na maioria das vezes, uma personagem secundária, a empregada está sempre presente nas novelas, o que tem relação com a nossa sociedade estratificada.
Na minha tese de doutorado eu analisei quatro personagens empregadas domésticas das novelas Avenida Brasil e A Regra do Jogo. Ambas do mesmo autor e da mesma diretora, João Emanuel Carneiro e Amora Mautner. O que mais chamou a atenção nas análises foi a diferença discursiva entre as empregadas brancas e as negras. O racismo estrutural presente no discurso rendeu a publicação de um artigo escrito em parceria com uma colega que estuda o racismo em nossa cultura (disponível aqui).
Lembrando que a semiótica greimasiana, também conhecida como semiótica discursiva, trabalha com o percurso gerativo de sentido dividido em três níveis: fundamental (no qual identificamos a oposição semântica básica do texto analisado), narrativo (que diz respeito à transformação de estado e ação dos atores da história em questão) e discursivo (que analisa o tratamento dado ao texto, se é mais temático ou figurativo, por exemplo, e como as ideologias são apresentadas).
Na análise das duas empregadas domésticas negras (Zezé de Avenida Brasil e Dinorah de A Regra do Jogo), no nível fundamental, encontramos oposições relacionadas a servidão versus liberdade ou soberania; e nas empregadas brancas, oposições referentes a dignidade versus indignidade. No nível narrativo, as negras não passam por grande transformação e continuam em posição subalterna em relação à casa em que trabalham, diferente das brancas que trocam o trabalho doméstico por uma situação melhor. Além disso, as negras não têm sua vida particular explorada, ao contrário das brancas cujas casas são mostradas e relacionamentos pessoais expostos. Discursivamente, o tom de comédia é predominante nas empregadas negras, que são ciumentas e fofoqueiras, diferente das brancas que contêm também drama em suas trajetórias. O discurso como um todo revela o estereotipo racial da mulher negra empregada presente no racismo estrutural de herança escravocrata.
Zezé começa e termina a trama trabalhando na casa de seus patrões. A primeira e a última vez em que aparece na novela ela está servindo a mesa da família. A moça demonstra ciúmes da nova cozinheira contratada e é bastante fiel à patroa, que não a trata bem e às vezes a humilha. Mas ao agradá-la, Zezé se coloca em posição privilegiada em comparação às outras empregadas, de modo ilusório. Depois de uma reviravolta na trama, a cozinheira Nina assume o posto da patroa vilã Carminha e Zezé continua trabalhando no mesmo local, com a diferença de ser bem tratada. Ela permanece no polo negativo da servidão da oposição semântica, mas em uma instância mais próxima da equiparação. Zezé não alcança o polo visto como positivo da soberania presente em suas atitudes de aliança com a antiga patroa.
O racismo estrutural é mais evidente na personagem Dinorah de A Regra do Jogo. Empregada de uma família falida que mora em uma cobertura, Dinorah não recebe salário há muito tempo, mas afirma que só vai embora quando for paga. Ela se dá muito bem com o patrão Feliciano a quem é fiel. Ao conseguir o dinheiro, Feliciano paga tudo o que deve a Dinorah e declara que ela pode parar de trabalhar. Apesar disso, a moça deseja continuar trabalhando para ele, mas vai embora quando Feliciano se casa com uma mulher que ela não aprova. No caso dessa personagem a liberdade é negativa (disfórica) na oposição semântica, pois o desejo dela era continuar com o patrão, e a servidão é tida como positiva. Apesar de ir embora da casa, Dinorah simplesmente desaparece da trama. Ou seja, não há a sanção do nível narrativo. Há referências mais claras ao período da escravidão em Dinorah, pois ela se mantém em um trabalho sem receber. O fato de Feliciano pagá-la de uma vez declarando sua liberdade remete ao ato de alforria escravocrata. Além disso, ela mora na cobertura em um quartinho de empregada.
Já Janaina e Conceição, ambras brancas, têm participação no desmascaramento dos patrões vilões e decidem por conta própria sair do emprego doméstico quando se sentem presas a uma situação indigna. Janaina tem a relação com o filho explorada na narrativa. Ela pede demissão porque o rapaz se envolve nas falcatruas da patroa. A partir daí, Janaina começa a vender salgados. A sanção dela acontece quando consegue resgatar o filho e passa a viver a vida digna que deseja. A narrativa de Conceição, por sua vez, explora a relação com o marido, motorista da mesma mansão em que trabalha. O pedido de demissão tem a ver com segredos que eles guardam e com chantagens que ambos sofrem de um pretendente mau-caráter da filha do patrão. Inclusive, o pedido de demissão é feito na festa de noivado, quando ela revela a verdadeira índole do noivo. A partir daí, Conceição aparece em outros episódios em sua casa junto do marido.
A metodologia da semiótica greimasiana, tratada aqui superficialmente, permitiu identificar como o sentido foi construído, destrinchando os três níveis. No caso, um discurso condizente com o racismo estrutural presente em nossa sociedade. Mas é importante ressaltar que análises como essa não têm a intenção de culpar pessoas específicas, como autores e diretores de novelas (mesmo porque a novela é uma obra aberta e coletiva). A ideia é chamar a atenção para a persistência de discursos racistas que fazem parte de toda uma conjuntura social e cultural e, por isso mesmo, precisam ser debatidos para que haja mudança.