Fábulas e semiótica
Fábulas e semiótica
Fábulas e semiótica
Quando leciono semiótica nos cursos de graduação em comunicação gosto de usar as fábulas de Esopo para tratar da semiótica discursiva, também conhecida como semiótica greimasiana ( do teórico Algirdas Julius Greimas). Por serem histórias curtas com uma mensagem moral explícita, as fábulas são perfeitas para praticar o percurso gerativo do sentido dessa semiótica.
São três os níveis de análise: o fundamental, o narrativo e o discursivo. De modo bem simplificado, no nível fundamental, identificamos qual é a oposição semântica básica tratada no texto, por exemplo amor versus ódio; no nível narrativo, analisamos a ação dos atores da história, os objetos de valor buscados e as transformações ocorridas; e no nível discursivo importa saber o “como” a narrativa e os valores da oposição semântica são apresentados, quais são as ideologias expostas. Nesse último quesito, verifica-se se o texto é mais figurativo ou temático.
De um livro infantil que eu tenho, com uma seleção de fábulas de Esopo, duas me atraem mais por serem facilmente comparáveis entre si: Vênus e a gata e O leão apaixonado. A primeira fala de uma gata que se apaixona por um rapaz e pede a Vênus que a transforme em moça para conquistá-lo. A deusa atende e o rapaz se apaixona pela linda garota que ela se torna. Eles se casam. Mas Vênus decide testar a gata para saber se ela mudou mesmo. Para isso, ela coloca um rato no quarto do casal. Na mesma hora, a moça começa a caçar o bicho e revela que não deixou o instinto de gata. Decepcionada, Vênus transforma a moça em gata novamente. “Moral: a aparência pode ser mudada, mas a natureza não”.
A outra fábula fala de um leão que se apaixona pela filha de um lenhador. Ele pede a mão da moça ao pai. Mas este não quer que a filha se case com alguém perigoso como o leão e nega o pedido. O leão se irrita com a negativa, e prevendo o perigo o lenhador manipula o bicho, convencendo-o a arrancar os próprios dentes e cortar as próprias garras para que sua filha não tenha medo. Depois de obedecer, quando o leão pede a mão da moça novamente, o lenhador que já não tem medo dele o manda embora. “Moral: quem perde a cabeça por amor sempre acaba mal”.
O nível fundamental das duas histórias contém oposições relacionadas a instintividade versus civilização. Na primeira esfera estão a natureza e a essência selvagem e na segunda, as convenções sociais, a cultura humana e a aparência. No caso da gata, o instinto é posto de forma negativa (disfórico) e a civilidade como positiva (eufórico); na história do leão, é o contrário, o lado selvagem é positivo e a convecção social negativa. Pois, o sentido da narrativa nos direciona a entender que a gata não mudou o seu instinto o suficiente para conseguir o que queria, mudou só na aparência; enquanto o leão errou em podar a sua ferocidade, ele “perdeu a cabeça” quando tentou se transformar em algo que ele não era. Ambos terminam em disjunção com o objeto de desejo e são punidos por motivos diferentes, um por mudar de menos e o outro por mudar. Interessante notar que o leão, um ser masculino, busca a aprovação de outro ser masculino, o pai da moça; enquanto a gata é julgada pela deusa Vênus, uma força extraterrena que pode ser interpretada como as coerções culturais e sociais.
Discursivamente, as fábulas são construídas de modo a se referirem a um tempo distante e a mundo fantástico, no qual animais apresentam qualidades humanas (figura de linguagem prosopopeia). São histórias figurativas, ou seja, os temas não são expostos de maneira pura, mas por meio de personagens e metáforas, por exemplo. Nas fábulas do leão e da gata, a escolha dos animais gata e leão pode ser interpretada como a representação do gênero feminino e do gênero masculino, respectivamente, e da hegemonia patriarcal que pressiona a mulher a se adaptar às convenções e a esconder os seus instintos e valoriza os instintos masculinos tidos como símbolos de brio e força. Pois, apesar de o lenhador não ter aceitado a ferocidade do leão em um primeiro momento, ele desprezou a fraqueza do bicho posteriormente.
Por que a gata não poderia ficar com o amado mesmo preservando os seus instintos, se ele mesmo não reclamou? Por que o leão não poderia conhecer a amada após tirar as garras e as presas se o lenhador queria um pretendente manso? Os seres julgadores têm papel importante nesse sentido, um ideal feminino cultural e social (Vênus, deusa do amor) e uma racionalidade masculina que almeja força para si (lenhador, que não queria um pretendente perigoso para a filha, teve medo do leão, mas o enganou e o desprezou depois de fraco).
Claro que outras oposições semânticas poderiam ser encontradas nas mesmas fábulas e dar vazão a mais interpretações. A semiótica não é uma ciência exata. Discussões e novas reflexões enriquecem o estudo, o que é ótimo para um debate em sala de aula.