Novela e semiótica
Novela e semiótica
A ascensão social da mocinha de novela pelo olhar da semiótica
Em 2017, enquanto fazia minha pesquisa de doutorado, publiquei um artigo sobre a ascensão social da mocinha na telenovela pela perspectiva da semiótica greimasiana (disponível aqui). A telenovela costuma representar a ascensão social de forma individualista, pela lógica meritocrática e pelo merecimento “moral”. Ou seja, a personagem protagonista boazinha que age corretamente merece enriquecer por conta de seu caráter e esforço. Isso acontece de forma quase mágica, por meio de um trabalho que dá certo ou pelo relacionamento com pessoas ricas, ou ainda, o que é muito comum, quando a mocinha descobre que é herdeira de uma grande fortuna.
Esse último é o caso de Cristina, personagem da novela Império, que analisei no artigo. Cristina é uma moça humilde que trabalha em um camelódromo, mas descobre de repente que é filha de um homem muito rico e uma das herdeiras da empresa de joias Império. A semiótica greimasiana possibilitou analisar a construção do sentido dessa trajetória de ascensão da personagem por meio dos três níveis: fundamental, narrativo e discursivo.
No caso do artigo eu foquei em uma cena específica para realizar a análise, na qual a oposição semântica básica encontrada, do nível fundamental, foi difusão versus concentração. O que isso quer dizer? Na cena analisada, Cristina, que já está rica e faz parte a empresa Império, tenta convencer seus meios-irmãos e madrasta a fabricar anéis de formatura para poder tirar a empresa de uma crise financeira. A ideia não é bem aceita, pois foge do perfil elitizado da Império que fabrica produtos exclusivos para um público seleto. Assim, a concentração é a vontade de manter a empresa elitista (expressa pelos sócios tradicionais), enquanto a difusão é a nova proposta de produzir para um público maior (trazida pela nova sócia).
Se olharmos para a narrativa de Cristina como um todo e não só para essa cena, temos oposições do tipo virtude versus vício ou justiça versus injustiça. Como muitas mocinhas de novela, Cristina é a vítima injustiçada que no final da trama tem a sua virtude finalmente reconhecida e recompensada por meio da ascensão econômica, da aprovação social e do amor romântico. Trata-se do reconhecimento presente no melodrama clássico, do qual fala Brooks¹ e Martín-Barbero², quando as verdades se revelam. Por exemplo, o caso da personagem Tóia da novela A Regra do Jogo, que eu analisei na tese de doutorado. Ela é uma moça pobre e trabalhadora que mora em uma comunidade, mas no decorrer da trama descobre que é filha de um cientista importante e dona de uma herança significativa. Além disso, ela acaba sendo inocentada pelos problemas que enfrentou com a justiça, assim como o seu namorado. A oposição semântica justiça versus injustiça está presente em sua jornada. A justiça não apenas como instituição social, mas como força maior e moral da humanidade.
O esquema narrativo padrão segundo a semiótica greimasiana contém as fases da manipulação (comando inicial que começa a narrativa), da competência (aquisição que torna o sujeito apto para a performance), da performance (ação principal) e da sanção (recompensa ou castigo). A cena analisada da personagem Cristina condiz com a fase da competência, pois a moça passa por provações para conseguir exercer o seu cargo na Império. Ela ainda não foi aceita. Depois, no decorrer dos capítulos, ela consegue o poder que necessita para tomar decisões na empresa e conclui o curso de Administração. Desse modo, Cristina completa a sua performance na narrativa e é recompensada com a felicidade.
A personagem Raquel, de Vale Tudo, também é uma heroína melodramática que passa por várias provações, consegue vencer todas e obtém a ascensão econômica. Nesse caso, ela não se descobre herdeira. Ela começa vendendo sanduíches na praia e termina como dona de uma empresa de catering de sucesso. Sua trajetória se sustenta na crença de que é possível enriquecer com honestidade e trabalho.
Lembrando que essas mocinhas são altruístas e por isso merecem o dinheiro. Depois de enriquecer elas continuam pensando no próximo. Tóia, por exemplo, constrói uma creche e um hospital para crianças; e Raquel encabeça o projeto cozinha solidária, que consiste na doação de uma refeição a cada prato de comida vendido.
No nível discursivo, os personagens são os interlocutores internos que dão voz à mensagem principal, por meio do conteúdo dos diálogos, da linguagem empregada, do figurino, dos enquadramentos, cenário, encenação, entre outros elementos que fazem parte do discurso da novela que é bastante figurativizado. Na cena analisada da Império, há o embate entre duas perspectivas de classe social, um lado rico que deseja manter os privilégios e o luxo e outro que representa a inclusão popular no universo do consumo e no universo educacional (anel de formatura). A esfera elitizada está representada pelos personagens esnobes e menos simpáticos e a perspectiva popular tem a heroína Cristina como porta-voz. É importante resgatar o contexto da época. A novela foi transmitida entre os anos de 2014 e 2015, quando estava em alta o tema da nova classe C brasileira, referente a uma parte da população que ascendeu economicamente no país por volta dos anos 2000 e cuja representação na teleficção foi evidenciada em 2012, principalmente nas telenovelas Avenida Brasil e Cheias de Charme, das quais eu trato na minha dissertação de mestrado.
O interessante de olhar as personagens de novela pela semiótica é conseguir identificar e explicar os padrões que fazem parte da maioria, além de possibilitar uma comparação mais detalhada entre elas. Como mostrado brevemente, a ascensão social das mocinhas tem uma base que se repete com variações. Claro que cada novela tem as suas peculiaridades, assim como cada momento histórico do Brasil. Cabe à análise semiótica destrinchar e relacionar essas especificidades com o todo.
1 BROOKS, Peter. The melodramatic imagination: Balzac, Henry James, melodrama, and the mode of excess. New Haven and London: Yale University Press, 1995.
2 MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Tradução: Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009